segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #2

Emancipação


Uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser "objetivamente"  satisfatório. O corolário dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes de sua própria situação.

Outros discursos freqüentes para protestos semelhantes foram os do "aburguesamento" dos despossuídos (a substituição de "ser" por "ter" e a de "agir" por "ser" como  os valores mais altos) e da "cultura de massas" (uma lesão cerebral coletiva causada pela "indústria cultural' plantando uma sede de entretenimento e diversão no lugar que - como diria Mathew Arnold - deveria ser ocupado pela "paixão pela doçura e pela luz e pela paixão de fazer com que estas triunfem").

Para hobbes, a falta de limites eficazes faz a vida "detestável, brutal e curta" - e, assim, qualquer coisa, menos feliz.  A coerção social é, nessa filosofia, a força emancipadora, e a única esperança de liberdade a que um humano pode razoavelmente aspirar. O resultado da rebelião contra as normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria condição, é uma agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza.

Os homens e as mulheres são inteira e verdadeiramente livres, e assim a agenda da libertação está praticamente esgotada. Somos talvez mais "predispostos à crítica': mais assertivos e intransigentes em nossas críticas, que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim dizer, "desdentada' incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas na "política-vida' A liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como há tempo nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência sem precedentes.

A teoria crítica pretendia desarmar e neutralizar, e de preferência eliminar de uma vez, a tendência totalitária de uma sociedade que se supunha sobrecarregada de inclinações totalitárias intrínseca e permanentemente.

O que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio humano:  a compulsiva e obsessiva, continua, irrefreável e sempre incompleta modernizaçâo; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa.
Movemo-nos  e continuaremos a nos por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranqüila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os objetivos  perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes.

Se a modernidade original era pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado de seus deveres "emancipatórios' exceto o dever de ceder a questão da emancipação às camadas média e inferior, às quais foi relegada a maior parte do peso da modernização contínua.

A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de "individualização' assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada "sociedade'. Resumidamente, a "individualização" consiste em transformar a "identidade" humana de um "dado" em uma "tarefa" e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada. O outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania.

Libertar as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão, sugeriu ele. O "cidadão" é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade - enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à "causa comum' ao "bem comum' à "boa sociedade" ou à "sociedade justa' Qual é o sentido de "interesses comuns" senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses? As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do "poder público" são que ele observe os "direitos humanos' isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam "em paz" - protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus. Não é mais verdade que o "público" tente colonizar o "privado" O que se dá é o contrário (política vida).

Foi só o sentido atribuído à emancipação sob condições passadas e não mais presentes que ficou obsoleto - não a tarefa da emancipação em si → Há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e suas chances de se tornar indivíduos de facto  - isto é, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade desejam. O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a critica compulsiva da realidade. Se o velho objetivo da teoria crítica - a emancipação humana - tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo que se abriu entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto.

O indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de fato sem antes tornar-se cidadão.


O objeto da ação dos filósofos não são apenas os próprios filósofos, seu pensamento, o "fazer interno" do filosofar, mas o mundo enquanto tal, e, por fim, a harmonia entre os dois. E tampouco há como evitar o fato duro de que - pelo menos no começo, enquanto a distância entre a verdade da filosofia e a realidade do mundo não for preenchida – o Estado seja tirânico. A tirania (Kojéve é inflexível quanto à possibilidade de essa forma de governo ser definida em termos moralmente neutros) ocorre quando uma fração dos cidadãos (pouco importa que sejam minoria ou maioria) impõe a todos os outros cidadãos suas idéias e ações, que são guiadas por uma autoridade que essa fração reconhece espontaneamente, mas que não conseguiu fazer que os outros reconheçam.

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