Emancipação
Uma dessas questões é a
possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade;
que as pessoas poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que
lhes cabe esteja longe de ser "objetivamente" satisfatório. O corolário dessa possibilidade
é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes de sua própria
situação.
Outros discursos freqüentes
para protestos semelhantes foram os do "aburguesamento" dos
despossuídos (a substituição de "ser" por "ter" e a de
"agir" por "ser" como os valores mais altos) e da "cultura de
massas" (uma lesão cerebral coletiva causada pela "indústria
cultural' plantando uma sede de entretenimento e diversão no lugar que - como
diria Mathew Arnold - deveria ser ocupado pela "paixão pela doçura e pela
luz e pela paixão de fazer com que estas triunfem").
Para hobbes, a falta de limites
eficazes faz a vida "detestável, brutal e curta" - e, assim, qualquer
coisa, menos feliz. A coerção social é,
nessa filosofia, a força emancipadora, e a única esperança de liberdade a que
um humano pode razoavelmente aspirar. O resultado da rebelião contra as normas,
mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas de uma vez por todas, e,
portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria condição, é uma agonia
perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza.
Os homens e as mulheres são
inteira e verdadeiramente livres, e assim a agenda da libertação está
praticamente esgotada. Somos talvez mais "predispostos à crítica': mais
assertivos e intransigentes em nossas críticas, que nossos ancestrais em sua
vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim dizer, "desdentada' incapaz
de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas na "política-vida' A
liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou,
como há tempo nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência sem
precedentes.
A teoria crítica pretendia
desarmar e neutralizar, e de preferência eliminar de uma vez, a tendência
totalitária de uma sociedade que se supunha sobrecarregada de inclinações
totalitárias intrínseca e permanentemente.
O que distingue a modernidade
de todas as outras formas históricas do convívio humano: a compulsiva e obsessiva, continua,
irrefreável e sempre incompleta modernizaçâo; a opressiva e inerradicável,
insaciável sede de destruição criativa.
Movemo-nos e continuaremos a nos por causa da
impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação, a linha de
chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranqüila movem-se rápido
demais. A consumação está sempre no futuro, e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação
no momento de sua realização, se não antes.
Se a modernidade original era
pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado de seus deveres
"emancipatórios' exceto o dever de ceder a questão da emancipação às camadas
média e inferior, às quais foi relegada a maior parte do peso da modernização contínua.
A sociedade moderna existe em
sua atividade incessante de "individualização' assim como as atividades
dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede de
entrelaçamentos chamada "sociedade'. Resumidamente, a
"individualização" consiste em transformar a "identidade"
humana de um "dado" em uma "tarefa" e encarregar os atores
da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como dos
efeitos colaterais) de sua realização. Na terra da liberdade individual de
escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do
jogo da individualização está decididamente fora da jogada. O outro lado da
individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania.
Libertar as pessoas pode
torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão, sugeriu ele. O
"cidadão" é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através
do bem-estar da cidade - enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou
prudente em relação à "causa comum' ao "bem comum' à "boa
sociedade" ou à "sociedade justa' Qual é o sentido de
"interesses comuns" senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus
próprios interesses? As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do
"poder público" são que ele observe os "direitos humanos' isto
é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o
façam "em paz" - protegendo a segurança de seus corpos e posses,
trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres
de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores
e maus. Não é mais verdade que o "público" tente colonizar o
"privado" O que se dá é o contrário (política vida).
Foi só o sentido atribuído à
emancipação sob condições passadas e não mais presentes que ficou obsoleto -
não a tarefa da emancipação em si → Há um grande e crescente abismo entre a
condição de indivíduos de jure e suas chances de se tornar indivíduos de facto - isto é, de ganhar controle sobre seus
destinos e tomar as decisões que em verdade desejam. O impulso modernizante, em
qualquer de suas formas, significa a critica compulsiva da realidade. Se o
velho objetivo da teoria crítica - a emancipação humana - tem qualquer
significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo que se abriu
entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto.
O indivíduo de jure não pode se
tornar indivíduo de fato sem antes tornar-se cidadão.
O objeto da ação dos filósofos
não são apenas os próprios filósofos, seu pensamento, o "fazer
interno" do filosofar, mas o mundo enquanto tal, e, por fim, a harmonia
entre os dois. E tampouco há como evitar o fato duro de que - pelo menos no
começo, enquanto a distância entre a verdade da filosofia e a realidade do
mundo não for preenchida – o Estado seja tirânico. A tirania (Kojéve é
inflexível quanto à possibilidade de essa forma de governo ser definida em
termos moralmente neutros) ocorre quando uma fração dos cidadãos (pouco importa
que sejam minoria ou maioria) impõe a todos os outros cidadãos suas idéias e
ações, que são guiadas por uma autoridade que essa fração reconhece
espontaneamente, mas que não conseguiu fazer que os outros reconheçam.
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