Tempo/espaço
Nunca e em nenhum lugar
faltaram pessoas prontas a encontrar uma lógica para sua infelicidade,
frustrações e derrotas humilhantes atribuindo a culpa a intenções malévolas e
mal-intencionados planos alheios. O que é novo é que são os assaltantes
(juntamente com os vagabundos e outros desocupados, personagens estranhos ao
lugar em que se movem) que levam agora a culpa, representando o diabo. Nos anos
60 e 70, os eleitores e as elites - uma ampla classe média nos Estados Unidos -
poderiam ter enfrentado a escolha de apoiar a política governamental para
eliminar a pobreza, administrar a competição étnica e integrar a todos em
instituições públicas comuns. Escolheram, em vez disso, comprar proteção,
estimulando o crescimento da indústria da segurança privada. A comunidade
definida por suas fronteiras vigiadas de perto e não mais por seu conteúdo; a
"defesa da comunidade" traduzida como o emprego de guardiões armados
para controlar a entrada; assaltante e vagabundo promovidos à posição de
inimigo número um; compartimentação das áreas públicas em enclaves
"defensáveis" com acesso seletivo; separação no lugar da vida em
comum - essas são as principais dimensões da evolução corrente da vida urbana.
O que significa, então, dizer
que o meio urbano é "civil" e, assim, propício à prática individual
da civilidade? Significa, antes e acima de tudo, a disponibilidade de espaços
que as pessoas possam compartilhar como personae públicas - sem serem instigadas,
pressionadas ou induzidas a tirar as máscaras e "deixar-se ir'
"expressar-se' confessar seus sentimentos íntimos e exibir seus
pensamentos, sonhos e angústias. A principal característica da civilidade é a
capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles
e sem pressioná-los a abandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os
fazem estranhos. A principal característica dos lugares "públicos mas não
civis" é a dispensabilidade dessa
interação.
"Os consumidores frequentemente
compartilham espaços físicos de consumo, como salas de concertos ou exibições,
pontos turísticos, áreas de esportes, shopping centers e cafés, sem ter
qualquer interação social real':6 Esses lugares encorajam a ação e não a
interação. Compartilhar o espaço físico com outros atores que realizam
atividade similar dá importância à ação, carimba-a com a aprovação do número.” Os
lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma "realidade real"
externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança.
Podemos dizer que
"comunidade" é uma versão compacta de estar junto, e de um tipo de
estar junto que quase nunca ocorre na "vida real": um estar junto de
pura semelhança, do tipo "nós que somos todos o mesmo"; um estar
junto que por essa razão é não-problemático e não exige esforço ou vigilância,
e está na verdade pré-determinado; um estar junto que não é uma tarefa, mas
"o dado" e dado muito antes que o esforço de fazê-lo.
Como lidar com a alteridade,
por Claude Lévi-Strauss: a primeira estratégia visava ao exílio ou aniquilação
dos "outros' a segunda visava à suspensão ou aniquilação de sua
alteridade.
Como indica Richard Sennett,
invocam-se mais a lei e a ordem quando as comunidades estão mais isoladas das
outras pessoas na cidade Durante as últimas duas décadas as cidades nos EUA
cresceram de maneira que homogeneizou as áreas étnicas; não é por acaso, então,
que o medo do estranho também cresceu à medida que essas comunidades étnicas
foram isoladas. “Manter a comunidade torna-se um fim em si mesmo; o expurgo dos
que não fazem parte torna-se assunto da comunidade.” A
capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa
vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa
capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. Não
surpreende, pois, que a etnicidade, mais que qualquer outra espécie de
identidade postulada, seja a primeira escolha quando se trata de fugir do
assustador espaço polifônico onde "ninguém sabe falar com ninguém"
para o "nicho seguro" onde "todos são parecidos com todos"
- e onde, assim, há pouco sobre o que falar e a fala é fácil.
O que quer que aconteça nesses
"não-lugares", todos devem sentir-se como se estivessem em casa, mas
ninguém deve se comportar como se verdadeiramente em casa. Um não-lugar "é
um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e
história: exemplos incluem aeroportos, autoestradas, anônimos quartos de hotel,
transporte público Jamais na história do mundo os não-lugares ocuparam tanto
espaço"
Os espaços vazios são antes de
mais nada vazios de significado. Vazios são os lugares em que não se entra e
onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela
presença de humanos. A cidade, como
outras cidades, tem muitos habitantes, cada um com um mapa da cidade em sua
cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles
se localizem em lugares diferentes.
Algo deve ter acontecido à
amplitude e à capacidade de carga da prática humana para que os soberanos
espaço e tempo repentinamente se ponham a encarar, olhos nos olhos, os
filósofos. Esse "algo" foi, podemos adivinhar, a construção de
veículos que podiam se mover mais rápido que as pernas dos humanos ou dos
animais; e veículos que, em clara oposição aos humanos e aos cavalos, podem ser
tornados mais e mais velozes, de tal modo que atravessar distâncias cada vez
maiores tomará cada vez menos tempo.
O tempo é diferente do espaço
porque, ao contrário deste, pode ser mudado e manipulado; tornou-se um fator de
disrupção: o parceiro dinâmico no casamento tempo-espaço. A modernidade nasceu
sob as estrelas da aceleração e da conquista de terras. Essa foi a era do
hardware, a época das máquinas pesadas e cada vez mais desajeitadas, dos muros
de fábricas cada vez mais longos guardando fábricas cada vez maiores que
ingerem equipes cada vez maiores, das poderosas locomotivas e dos gigantescos
transatlânticos. Riqueza e poder que dependem do tamanho e qualidade do hardware
tendem a ser lentas, resistentes e complicadas de mover.
Tudo isso mudou, no entanto,
com o advento do capitalismo de software e da modernidade "leve”. A
mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação
do tempo. No universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode
ser atravessado, literalmente, em "tempo nenhum”. O espaço não impõe mais
limites à ação e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta. São os obstáculos
que precisam ser superados no caminho que leva à sua apropriação, "a
tensão da luta por elas'; que as fazem valiosas. O tempo não é mais o
"desvio na busca'; e assim não mais confere valor ao espaço. Quem manda
são as pessoas que conseguem manter suas ações livres, sem normas e portanto
imprevisíveis, ao mesmo tempo em que regulam normativamente as ações dos
protagonistas. Pessoas com as mãos livres mandam em pessoas com as mãos atadas.
O capital se livrou do peso e dos custos exorbitantes de mantê-lo. A arte da
administração na era do capitalismo leve consiste em manter afastada a
"mão-de-obra humana" ou, melhor ainda, forçá-la a sair. Encontros
breves substituem engajamentos duradouros. A competição pela sobrevivência
certamente é o destino dos trabalhadores - e de todos os que estão do lado que
sofre a mudança da relação entre tempo e espaço.
O ilimitado das sensações
possíveis ocupa o lugar que era ocupado nos sonhos pela duração infinita.
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