sábado, 18 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #4


Tempo/espaço

Nunca e em nenhum lugar faltaram pessoas prontas a encontrar uma lógica para sua infelicidade, frustrações e derrotas humilhantes atribuindo a culpa a intenções malévolas e mal-intencionados planos alheios. O que é novo é que são os assaltantes (juntamente com os vagabundos e outros desocupados, personagens estranhos ao lugar em que se movem) que levam agora a culpa, representando o diabo. Nos anos 60 e 70, os eleitores e as elites - uma ampla classe média nos Estados Unidos - poderiam ter enfrentado a escolha de apoiar a política governamental para eliminar a pobreza, administrar a competição étnica e integrar a todos em instituições públicas comuns. Escolheram, em vez disso, comprar proteção, estimulando o crescimento da indústria da segurança privada. A comunidade definida por suas fronteiras vigiadas de perto e não mais por seu conteúdo; a "defesa da comunidade" traduzida como o emprego de guardiões armados para controlar a entrada; assaltante e vagabundo promovidos à posição de inimigo número um; compartimentação das áreas públicas em enclaves "defensáveis" com acesso seletivo; separação no lugar da vida em comum - essas são as principais dimensões da evolução corrente da vida urbana.

O que significa, então, dizer que o meio urbano é "civil" e, assim, propício à prática individual da civilidade? Significa, antes e acima de tudo, a disponibilidade de espaços que as pessoas possam compartilhar como personae públicas - sem serem instigadas, pressionadas ou induzidas a tirar as máscaras e "deixar-se ir' "expressar-se' confessar seus sentimentos íntimos e exibir seus pensamentos, sonhos e angústias. A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los a abandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os fazem estranhos. A principal característica dos lugares "públicos mas não civis"  é a dispensabilidade dessa interação.

"Os consumidores frequentemente compartilham espaços físicos de consumo, como salas de concertos ou exibições, pontos turísticos, áreas de esportes, shopping centers e cafés, sem ter qualquer interação social real':6 Esses lugares encorajam a ação e não a interação. Compartilhar o espaço físico com outros atores que realizam atividade similar dá importância à ação, carimba-a com a aprovação do número.” Os lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma "realidade real" externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança.
Podemos dizer que "comunidade" é uma versão compacta de estar junto, e de um tipo de estar junto que quase nunca ocorre na "vida real": um estar junto de pura semelhança, do tipo "nós que somos todos o mesmo"; um estar junto que por essa razão é não-problemático e não exige esforço ou vigilância, e está na verdade pré-determinado; um estar junto que não é uma tarefa, mas "o dado" e dado muito antes que o esforço de fazê-lo.

Como lidar com a alteridade, por Claude Lévi-Strauss: a primeira estratégia visava ao exílio ou aniquilação dos "outros' a segunda visava à suspensão ou aniquilação de sua alteridade.

Como indica Richard Sennett, invocam-se mais a lei e a ordem quando as comunidades estão mais isoladas das outras pessoas na cidade Durante as últimas duas décadas as cidades nos EUA cresceram de maneira que homogeneizou as áreas étnicas; não é por acaso, então, que o medo do estranho também cresceu à medida que essas comunidades étnicas foram isoladas. “Manter a comunidade torna-se um fim em si mesmo; o expurgo dos que não fazem parte torna-se assunto da comunidade.” A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. Não surpreende, pois, que a etnicidade, mais que qualquer outra espécie de identidade postulada, seja a primeira escolha quando se trata de fugir do assustador espaço polifônico onde "ninguém sabe falar com ninguém" para o "nicho seguro" onde "todos são parecidos com todos" - e onde, assim, há pouco sobre o que falar e a fala é fácil. 

O que quer que aconteça nesses "não-lugares", todos devem sentir-se como se estivessem em casa, mas ninguém deve se comportar como se verdadeiramente em casa. Um não-lugar "é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história: exemplos incluem aeroportos, autoestradas, anônimos quartos de hotel, transporte público Jamais na história do mundo os não-lugares ocuparam tanto espaço"

Os espaços vazios são antes de mais nada vazios de significado. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos.  A cidade, como outras cidades, tem muitos habitantes, cada um com um mapa da cidade em sua cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem  em lugares diferentes.
Algo deve ter acontecido à amplitude e à capacidade de carga da prática humana para que os soberanos espaço e tempo repentinamente se ponham a encarar, olhos nos olhos, os filósofos. Esse "algo" foi, podemos adivinhar, a construção de veículos que podiam se mover mais rápido que as pernas dos humanos ou dos animais; e veículos que, em clara oposição aos humanos e aos cavalos, podem ser tornados mais e mais velozes, de tal modo que atravessar distâncias cada vez maiores tomará cada vez menos tempo.

O tempo é diferente do espaço porque, ao contrário deste, pode ser mudado e manipulado; tornou-se um fator de disrupção: o parceiro dinâmico no casamento tempo-espaço. A modernidade nasceu sob as estrelas da aceleração e da conquista de terras. Essa foi a era do hardware, a época das máquinas pesadas e cada vez mais desajeitadas, dos muros de fábricas cada vez mais longos guardando fábricas cada vez maiores que ingerem equipes cada vez maiores, das poderosas locomotivas e dos gigantescos transatlânticos. Riqueza e poder que dependem do tamanho e qualidade do hardware tendem a ser lentas, resistentes e complicadas de mover.

Tudo isso mudou, no entanto, com o advento do capitalismo de software e da modernidade "leve”. A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação do tempo. No universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, em "tempo nenhum”. O espaço não impõe mais limites à ação e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta. São os obstáculos que precisam ser superados no caminho que leva à sua apropriação, "a tensão da luta por elas'; que as fazem valiosas. O tempo não é mais o "desvio na busca'; e assim não mais confere valor ao espaço. Quem manda são as pessoas que conseguem manter suas  ações livres, sem normas e portanto imprevisíveis, ao mesmo tempo em que regulam normativamente as ações dos protagonistas. Pessoas com as mãos livres mandam em pessoas com as mãos atadas. O capital se livrou do peso e dos custos exorbitantes de mantê-lo. A arte da administração na era do capitalismo leve consiste em manter afastada a "mão-de-obra humana" ou, melhor ainda, forçá-la a sair. Encontros breves substituem engajamentos duradouros. A competição pela sobrevivência certamente é o destino dos trabalhadores - e de todos os que estão do lado que sofre a mudança da relação entre tempo e espaço.


O ilimitado das sensações possíveis ocupa o lugar que era ocupado nos sonhos pela duração infinita.

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