quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #3

Individualidade


O mundo ordeiro do discurso de Joshua é um mundo rigidamente controlado. Tudo nesse mundo serve a algum propósito, mesmo que não seja claro (por enquanto, para alguns, mas para sempre, para a maioria) qual é esse propósito. Esse mundo não tem espaço para o que não tiver uso ou propósito. O não-uso, além disso, seria reconhecido nesse mundo como propósito legítimo. Para ser reconhecido, deve servir à manutenção e perpetuação do todo ordenado.

O capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos supervisores; o de homens e mulheres dirigidos por outros, buscando fins determinados por outros, do modo determinado por outros. Weber previu o triunfo iminente da "racionalidade instrumental": com o destino da história humana dado como sabido, e a questão dos fins da ação humana acertada e não mais aberta à contestação, as pessoas passariam a se ocupar mais, talvez exclusivamente, da questão dos meios - o futuro seria, por assim dizer, obcecado com os meios. No capitalismo leve temos  o que está em pauta é a questão de considerar e decidir, em face de todos os riscos conhecidos ou meramente adivinhados, quais dos muitos flutuantes e sedutores fins "ao alcance" (isto é, que podem ser razoavelmente perseguidos) devem ter prioridade - dada a quantidade de meios disponíveis e levando em consideração as ínfimas chances de sua utilidade duradoura.  Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. As autoridades não mais ordenam; elas se tornam agradáveis a quem escolhe; tentam e seduzem. A autoridade amplia o número de seguidores, mas, no mundo de fins incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz - que é- a autoridade. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. A consciência de que o jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o inventário das maravilhas que a vida pode oferecer são muito agradáveis e satisfatórios.

No mundo atual não temos líderes, mas sim conselheiros. Ao fim da sessão de aconselhamento, as pessoas aconselhadas estão tão sós quanto antes. Qualquer que fosse o conteúdo do aconselhamento, este se referia a coisas que a pessoa aconselhada deveria fazer por si mesma, aceitando inteira responsabilidade por fazê-las de maneira apropriada, e não culpando a ninguém pelas conseqüências desagradáveis que só poderiam ser atribuídas a seu próprio erro ou negligência.  Olhando para a experiência de outras pessoas, tendo uma ideia de suas dificuldades e atribulações, esperamos descobrir e localizar os problemas que causaram nossa própria infelicidade, dar-lhes um nome e, portanto, saber para onde olhar para encontrar meios de resistir a eles ou resolvê-los.

Procurar exemplos, conselho e orientação é um vício: quanto mais se procura, mais se precisa e mais se sofre quando privado de novas doses da droga procurada.
O código em que nossa "política de vida" está escrito deriva da pragmática do comprar. "Vamos às compras" pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos escondermos do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa "dependência" do parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor meio de poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar dinheiro antes de ganhá-lo; pelos recursos para fazer mais rápido o que temos que fazer e por coisas para fazer a fim de encher o tempo então disponível; pelas comidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para eliminar as conseqüências de comê-las; pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores pílulas contra a dor de cabeça. A história do consumismo é a história da quebra e descarte de sucessivos obstáculos "sólidos" que limitam o vôo livre da fantasia e reduzem o "princípio do prazer" ao tamanho ditado pelo "princípio da realidade'. Alfred Sloan era um pioneiro do que mais tarde se tornaria uma tendência universal. A produção de mercadorias como um todo substitui hoje "o mundo dos objetos duráveis" pelos "produtos perecíveis projetados para a obsolescência imediata"
Numa sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres não podem desviar os olhos; não há mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o sentido da realidade empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos.

O status de todas as normas, inclusive a norma da saúde, foi severamente abalado e se tornou frágil, numa sociedade de infinitas e indefinidas possibilidades. O que ontem era considerado normal e, portanto, satisfatório, pode hoje ser considerado preocupante, ou mesmo patológico, requerendo um remédio. Primeiro, estados do corpo sempre renovados tomam-se razões legítimas para intervenção médica - e as terapias disponíveis também não ficam estáticas.

Quando falamos de identidade há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica, consistência: todas as coisas que parecem - para nosso desespero eterno - faltar tanto e tão abominavelmente ao fluxo de nossa experiência. A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme.  As identidades parecem fixas e sólidas apenas quando vistas de relance, de fora. A "idade da ironia" foi substituída pela "idade do glamour”, em que a aparência é consagrada como única realidade A modernidade, assim, muda de um período do eu "autêntico" para um período do eu "irônico" e para uma cultura contemporânea do que poderia ser chamado de eu "associativo" - um "afrouxamento" contínuo dos laços entre a alma "interior" e a forma "exterior" da relação social. As identidades são assim oscilações contínuas.


Mudar de identidade pode ser uma questão privada, mas sempre inclui a ruptura de certos vínculos e o cancelamento de certas obrigações; os que estão do lado que sofre quase nunca são consultados, e menos ainda têm chance de exercitar sua liberdade de escolha.

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