Individualidade
O mundo ordeiro do discurso de
Joshua é um mundo rigidamente controlado. Tudo nesse mundo serve a algum
propósito, mesmo que não seja claro (por enquanto, para alguns, mas para
sempre, para a maioria) qual é esse propósito. Esse mundo não tem espaço para o
que não tiver uso ou propósito. O não-uso, além disso, seria reconhecido nesse
mundo como propósito legítimo. Para ser reconhecido, deve servir à manutenção e
perpetuação do todo ordenado.
O capitalismo pesado, no estilo
fordista, era o mundo dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos
supervisores; o de homens e mulheres dirigidos por outros, buscando fins
determinados por outros, do modo determinado por outros. Weber previu o triunfo
iminente da "racionalidade instrumental": com o destino da história
humana dado como sabido, e a questão dos fins da ação humana acertada e não
mais aberta à contestação, as pessoas passariam a se ocupar mais, talvez
exclusivamente, da questão dos meios - o futuro seria, por assim dizer,
obcecado com os meios. No capitalismo leve temos o que está em pauta é a questão de considerar
e decidir, em face de todos os riscos conhecidos ou meramente adivinhados,
quais dos muitos flutuantes e sedutores fins "ao alcance" (isto é,
que podem ser razoavelmente perseguidos) devem ter prioridade - dada a
quantidade de meios disponíveis e levando em consideração as ínfimas chances de
sua utilidade duradoura. Nesse
mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. As
autoridades não mais ordenam; elas se tornam agradáveis a quem escolhe; tentam
e seduzem. A autoridade amplia o número de seguidores, mas, no mundo de fins
incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz - que
é- a autoridade. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos,
irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. A consciência de que o
jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o inventário das maravilhas
que a vida pode oferecer são muito agradáveis e satisfatórios.
No mundo atual não temos
líderes, mas sim conselheiros. Ao fim da sessão de aconselhamento, as pessoas
aconselhadas estão tão sós quanto antes. Qualquer que fosse o conteúdo do
aconselhamento, este se referia a coisas que a pessoa aconselhada deveria fazer
por si mesma, aceitando inteira responsabilidade por fazê-las de maneira
apropriada, e não culpando a ninguém pelas conseqüências desagradáveis que só
poderiam ser atribuídas a seu próprio erro ou negligência. Olhando para a experiência de outras pessoas,
tendo uma ideia de suas dificuldades e atribulações, esperamos descobrir e
localizar os problemas que causaram nossa própria infelicidade, dar-lhes um
nome e, portanto, saber para onde olhar para encontrar meios de resistir a eles
ou resolvê-los.
Procurar exemplos, conselho e
orientação é um vício: quanto mais se procura, mais se precisa e mais se sofre
quando privado de novas doses da droga procurada.
O código em que nossa
"política de vida" está escrito deriva da pragmática do comprar.
"Vamos
às compras" pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios
de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem
que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que
somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos
desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos
escondermos do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e
pelos meios de evitar nossa "dependência" do parceiro amado ou
amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar
com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo
melhor meio de poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente
de gastar dinheiro antes de ganhá-lo; pelos recursos para fazer mais rápido o
que temos que fazer e por coisas para fazer a fim de encher o tempo então
disponível; pelas comidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para
eliminar as conseqüências de comê-las; pelos mais poderosos sistemas de som e
as melhores pílulas contra a dor de cabeça. A história do consumismo é a
história da quebra e descarte de sucessivos obstáculos "sólidos" que
limitam o vôo livre da fantasia e reduzem o "princípio do prazer" ao
tamanho ditado pelo "princípio da realidade'. Alfred Sloan era um pioneiro
do que mais tarde se tornaria uma tendência universal. A produção de
mercadorias como um todo substitui hoje "o mundo dos objetos
duráveis" pelos "produtos perecíveis projetados para a obsolescência
imediata"
Numa sociedade sinóptica de
viciados em comprar/assistir, os pobres não podem desviar os olhos; não há mais
para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e quanto mais sedutoras as
tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o sentido da realidade
empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de experimentar, ainda
que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais escolha parecem ter
os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos.
O status de todas as normas,
inclusive a norma da saúde, foi severamente abalado e se tornou frágil, numa
sociedade de infinitas e indefinidas possibilidades. O que ontem era
considerado normal e, portanto, satisfatório, pode hoje ser considerado
preocupante, ou mesmo patológico, requerendo um remédio. Primeiro, estados do
corpo sempre renovados tomam-se razões legítimas para intervenção médica - e as
terapias disponíveis também não ficam estáticas.
Quando falamos de identidade
há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica,
consistência: todas as coisas que parecem - para nosso desespero eterno -
faltar tanto e tão abominavelmente ao fluxo de nossa experiência. A busca da
identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de
solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. As identidades parecem fixas e sólidas
apenas quando vistas de relance, de fora. A "idade da ironia" foi substituída
pela "idade do glamour”, em que a aparência é consagrada como única
realidade A modernidade, assim, muda de um período do eu "autêntico"
para um período do eu "irônico" e para uma cultura contemporânea do
que poderia ser chamado de eu "associativo" - um
"afrouxamento" contínuo dos laços entre a alma "interior" e
a forma "exterior" da relação social. As identidades são assim
oscilações contínuas.
Mudar de identidade pode ser
uma questão privada, mas sempre inclui a ruptura de certos vínculos e o
cancelamento de certas obrigações; os que estão do lado que sofre quase nunca
são consultados, e menos ainda têm chance de exercitar sua liberdade de
escolha.
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