segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #6

Comunidade

O comunitarismo é uma reação esperável à acelerada "liquefação" da vida moderna. O comunitarismo renascido responde à questão genuína e pungente de que o pêndulo oscila radicalmente - e talvez para longe demais - afastando-se do pólo da segurança na díade dos valores humanos fundamentais. O principal apelo do comunitarismo é a promessa de um porto seguro, o destino dos sonhos dos marinheiros perdidos no mar turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível. Os que estavam presos dentro de uma casa comum de alvenaria podiam, vez ou outra, ser assaltados pela estranha impressão de estar numa prisão e não num porto seguro; a liberdade da rua acenava de fora, tão inacessível quanto a sonhada segurança do lar tende a ser hoje.  A comunidade ideal é um compleat mappa mundi: um mundo total, que oferece tudo de que se pode precisar para levar uma vida significativa e compensadora. O mundo comunitário está completo porque todo o resto é irrelevante; mais exatamente, hostil - um ermo repleto de emboscadas e conspirações e fervilhante de inimigos que brandem o caos como sua arma principal.

O "nós" do credo patriótico/nacionalista significa pessoas como nós-, "eles" significa pessoas que são diferentes de nós. As fronteiras não reconhecem e registram um estranhamento já existente; elas são traçadas, como regra, antes que o estranhamento seja produzido. Primeiro há um conflito, uma tentativa desesperada de separar "nós" e "eles"; então os traços cuidadosamente espiados "neles" são tomados como prova e fonte de uma estranheza que não admite conciliação. Sendo os seres humanos como são, criaturas multifacetadas com muitos atributos, não é difícil encontrar tais traços quando a busca é feita a sério.

Podemos dizer que em rigorosa oposição tanto à fé patriótica quanto à nacionalista, o tipo mais promissor de unidade é a que é alcançada, e realcançada a cada dia, pelo confronto, debate, negociação e compromisso entre valores, preferências e caminhos escolhidos para a vida e a auto- identificação de muitos e diferentes membros da polis, mas sempre autodeterminados. Uma unidade erguida pela negociação e reconciliação, e não pela negação, sufocação ou supressão das diferenças. O "nós' como insiste Richard Sennett, "é hoje um ato de autoproteção. O desejo de comunidade é defensivo ... Certamente é quase urna lei universal que o "nós" pode ser usado como defesa contra a confusão e o deslocamento" Mas - e este é um "mas" crucial - quando o desejo de comunidade "se expressa como rejeição dos imigrantes e outros estranhos", é porque a política atual baseada no desejo de refúgio tem por alvo os fracos, que viajam nos circuitos do mercado global de trabalho, e não os fortes, as instituições que mobilizam os trabalhadores pobres ou fazem uso de sua privação relativa. A imagem da comunidade é purificada de tudo o que pode trazer uma sensação de diferença, que dirá conflito, a quem somos "nós”. Desse modo, o mito da solidariedade comunitária é um ritual de purificação ... O que distingue esse compartilhamento mítico nas comunidades é que as pessoas sentem que pertencem umas às outras, e ficam juntas, porque são as mesmas ... O sentimento de "nós' que expressa o desejo de semelhança, é um modo de evitar olhar mais profundamente nos olhos dos outros.

O potencial de liberação nunca foi a questão dos comunitários; os problemas que se esperava que as futuras comunidades sanassem eram sedimentos dos excessos de liberação, de um potencial de liberação grande demais para ser confortável.

Parece haver pouca esperança de resgatar os serviços de certeza, segurança e garantias do Estado. A liberdade da política do Estado é incansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das terríveis armas da extraterritorialidade. Se a demonstração diária e rotineira da superioridade das forças globais não for suficiente para forçar o Estado a ver a razão e cooperar com a nova "ordem mundial' a força militar é exercida: a superioridade da velocidade sobre a lentidão, da capacidade de escapar sobre a necessidade de engajar-se no combate, da extraterritorialidade sobre a localidade, tudo isso se manifesta espetacularmente com a ajuda, desta vez, de forças armadas especializadas em táticas de atacar e correr e a estrita separação entre "vidas a serem salvas" e vidas que não merecem socorro.

Para as multinacionais (isto é, empresas globais com interesses e compromissos locais dispersos e cambiantes), "o mundo ideal" "é um mundo sem Estados, ou pelo menos com pequenos e não grandes Estados' observou Eric Hobsbawm. "A menos que tenha petróleo, quanto menor o Estado, mais fraco ele é, e menos dinheiro é necessário para se comprar um governo". A clara incapacidade dos governos de equilibrar as contas com os recursos que controlam (isto é, os recursos que eles podem estar certos de que continuarão no domínio de sua jurisdição independente do modo que escolham para equilibrar as contas) seria suficiente para fazê-los não só se renderem ao inevitável, mas colaborarem ativamente e de bom grado com os "globais”.


A maioria das comunidades explosivas contemporâneas são feitas sob medida para os tempos líquidos modernos mesmo que sua disseminação possa ser projetada territorialmente; precisam de um espetáculo que apele a Interesses semelhantes em indivíduos diferentes e que os reúna durante um certo tempo em que outros interesses - que os separam em vez de uni-los - são temporariamente postos de lado, deixados em fogo brando ou inteiramente silenciados. Os espetáculos passaram a substituir a "causa comum" da era da modernidade sólida, do hardware - o que faz diferença para a natureza das identidades ao novo estilo e leva a dar sentido às tensões emocionais e traumas geradores de agressividade que de tempos em tempos as acompanham. A cada dia, as manchetes de primeira página da imprensa e dos cinco primeiros minutos da TV acenam com novas bandeiras sob as quais reunir-se e marchar ombro (virtual) a ombro (virtual). Oferecem um "objetivo comum" (virtual) em torno do qual comunidades virtuais podem se entrelaçar, alternadamente atraídas e repelidas pelas sensações sincronizadas de pânico (às vezes moral, mas geralmente imoral ou amoral) e êxtase.

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