Comunidade
O comunitarismo é uma reação
esperável à acelerada "liquefação" da vida moderna. O comunitarismo
renascido responde à questão genuína e pungente de que o pêndulo oscila
radicalmente - e talvez para longe demais - afastando-se do pólo da segurança
na díade dos valores humanos fundamentais. O principal apelo do comunitarismo é
a promessa de um porto seguro, o destino dos sonhos dos marinheiros perdidos no
mar turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível. Os que estavam
presos dentro de uma casa comum de alvenaria podiam, vez ou outra, ser
assaltados pela estranha impressão de estar numa prisão e não num porto seguro;
a liberdade da rua acenava de fora, tão inacessível quanto a sonhada segurança
do lar tende a ser hoje. A comunidade
ideal é um compleat mappa mundi: um mundo total, que oferece tudo de que se
pode precisar para levar uma vida significativa e compensadora. O mundo
comunitário está completo porque todo o resto é irrelevante; mais exatamente,
hostil - um ermo repleto de emboscadas e conspirações e fervilhante de inimigos
que brandem o caos como sua arma principal.
O "nós" do credo
patriótico/nacionalista significa pessoas como nós-, "eles" significa
pessoas que são diferentes de nós. As fronteiras não reconhecem e registram um
estranhamento já existente; elas são traçadas, como regra, antes que o
estranhamento seja produzido. Primeiro há um conflito, uma tentativa
desesperada de separar "nós" e "eles"; então os traços
cuidadosamente espiados "neles" são tomados como prova e fonte de uma
estranheza que não admite conciliação. Sendo os seres humanos como são,
criaturas multifacetadas com muitos atributos, não é difícil encontrar tais
traços quando a busca é feita a sério.
Podemos dizer que em rigorosa
oposição tanto à fé patriótica quanto à nacionalista, o tipo mais promissor de
unidade é a que é alcançada, e realcançada a cada dia, pelo confronto, debate,
negociação e compromisso entre valores, preferências e caminhos escolhidos para
a vida e a auto- identificação de muitos e diferentes membros da polis, mas
sempre autodeterminados. Uma unidade erguida pela negociação e reconciliação, e
não pela negação, sufocação ou supressão das diferenças. O "nós' como
insiste Richard Sennett, "é hoje um ato de autoproteção. O desejo de
comunidade é defensivo ... Certamente é quase urna lei universal que o
"nós" pode ser usado como defesa contra a confusão e o
deslocamento" Mas - e este é um "mas" crucial - quando o desejo
de comunidade "se expressa como rejeição dos imigrantes e outros estranhos",
é porque a política atual baseada no desejo de refúgio tem por alvo os fracos,
que viajam nos circuitos do mercado global de trabalho, e não os fortes, as
instituições que mobilizam os trabalhadores pobres ou fazem uso de sua privação
relativa. A imagem da comunidade é purificada de tudo o que pode trazer uma
sensação de diferença, que dirá conflito, a quem somos "nós”. Desse modo,
o mito da solidariedade comunitária é um ritual de purificação ... O que
distingue esse compartilhamento mítico nas comunidades é que as pessoas sentem
que pertencem umas às outras, e ficam juntas, porque são as mesmas ... O
sentimento de "nós' que expressa o desejo de semelhança, é um modo de
evitar olhar mais profundamente nos olhos dos outros.
O potencial de liberação nunca
foi a questão dos comunitários; os problemas que se esperava que as futuras
comunidades sanassem eram sedimentos dos excessos de liberação, de um potencial
de liberação grande demais para ser confortável.
Parece haver pouca esperança de
resgatar os serviços de certeza, segurança e garantias do Estado. A liberdade
da política do Estado é incansavelmente erodida pelos novos poderes globais
providos das terríveis armas da extraterritorialidade. Se a demonstração diária
e rotineira da superioridade das forças globais não for suficiente para forçar
o Estado a ver a razão e cooperar com a nova "ordem mundial' a força
militar é exercida: a superioridade da velocidade sobre a lentidão, da
capacidade de escapar sobre a necessidade de engajar-se no combate, da
extraterritorialidade sobre a localidade, tudo isso se manifesta
espetacularmente com a ajuda, desta vez, de forças armadas especializadas em
táticas de atacar e correr e a estrita separação entre "vidas a serem
salvas" e vidas que não merecem socorro.
Para as multinacionais (isto é,
empresas globais com interesses e compromissos locais dispersos e cambiantes),
"o mundo ideal" "é um mundo sem Estados, ou pelo menos com
pequenos e não grandes Estados' observou Eric Hobsbawm. "A menos que tenha
petróleo, quanto menor o Estado, mais fraco ele é, e menos dinheiro é
necessário para se comprar um governo". A clara incapacidade dos governos
de equilibrar as contas com os recursos que controlam (isto é, os recursos que
eles podem estar certos de que continuarão no domínio de sua jurisdição
independente do modo que escolham para equilibrar as contas) seria suficiente
para fazê-los não só se renderem ao inevitável, mas colaborarem ativamente e de
bom grado com os "globais”.
A maioria das comunidades
explosivas contemporâneas são feitas sob medida para os tempos líquidos
modernos mesmo que sua disseminação possa ser projetada territorialmente; precisam
de um espetáculo que apele a Interesses semelhantes em indivíduos diferentes e
que os reúna durante um certo tempo em que outros interesses - que os separam
em vez de uni-los - são temporariamente postos de lado, deixados em fogo brando
ou inteiramente silenciados. Os espetáculos passaram a substituir a "causa
comum" da era da modernidade sólida, do hardware - o que faz diferença
para a natureza das identidades ao novo estilo e leva a dar sentido às tensões
emocionais e traumas geradores de agressividade que de tempos em tempos as
acompanham. A cada dia, as manchetes de primeira página da imprensa e dos cinco
primeiros minutos da TV acenam com novas bandeiras sob as quais reunir-se e
marchar ombro (virtual) a ombro (virtual). Oferecem um "objetivo
comum" (virtual) em torno do qual comunidades virtuais podem se
entrelaçar, alternadamente atraídas e repelidas pelas sensações sincronizadas
de pânico (às vezes moral, mas geralmente imoral ou amoral) e êxtase.
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