terça-feira, 28 de outubro de 2014

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

ELEIÇÕES 2014


(por kira leigh)

Algumas coisas que observei durante as eleições:
  • Um número menor de pessoas resmungando sobre o quão chata a política é.
  • Blogs tentando conscientizar os leitores, indicando sites e aplicativos onde as propostas dos candidatos eram analisadas e comentadas.
  • Assuntos polêmicos ganhando espaço e servindo como divisor de águas.
  • Pessoas se posicionando com base em fragmentos de programas eleitorais, em oposição à ideia de analisar todas as propostas e escolher aquela que lhe parece melhor.
  • Atenção focada na corrida presidencial e, às vezes, na disputa pelo cargo de governador. O legislativo ainda é negligenciado, mesmo sendo o poder que regulamenta a estrutura da nossa sociedade (ou deixa umas lacunas grotescas na lei, forçando o poder judiciário a "legislar" frente ao caso concreto).
  • Comportamento competitivo: pessoas evitando votar naqueles que "não têm chance de ganhar", pessoas levantando bandeiras sem se informar direito, discussões ferrenhas e cheias de inflexibilidade (em especial nas redes sociais).
  • Desrespeito e despreparo para lidar com diferentes opiniões: isso se evidenciou especialmente após a apuração dos votos, no dia 26/10/2014, quando a presidenta Dilma teve sua reeleição confirmada. Os eleitores da presidenta mandaram um carinhoso "chupa" aos eleitores do Aécio, no maior estilo rivalidade de futebol (como se o progresso do país não interessasse a todos nós...). Os eleitores do Aécio deram amostras de xenofobia e tacharam os partidários de Dilma de burros. 
  • Necessidade de estar certo: ouvi muita gente desejando que, na eventualidade de o candidato oposto ganhar, o país entrasse em colapso. Isto é basicamente dizer: quero que os 202656788 habitantes do Brasil tomem no cu, só pra provar que estou certo(a).


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

A impressão que eu tenho é a de que a maioria das pessoas não está, de fato, preocupada com a redução da criminalidade. A redução da criminalidade se alcança aplicando medidas que trazem oportunidades aos jovens.
O que vejo quase sempre é uma série de discursos inflamados, passionais, normalmente de alguém se coloca no lugar de um familiar ferido que acaba de perder alguém, ser abusado ou algo do tipo. Não vejo nada de mal em ter empatia por quem sofre, muito pelo contrário. Creio que a falta de empatia é um dos grandes problemas existentes na pós-modernidade, e está por trás de muitos atos de intolerância e preconceito.
Contudo, não podemos nos deixar cegar pelo sentimento de indignação que nos toma quando somos noticiados acerca de crimes cometidos por jovens. Por mais que nosso reflexo seja querer punir, temos que diferenciar justiça de vingança. Mais ainda, temos que sopesar os efeitos:
  1. Por um lado, vinga-se a família da vítima, joga-se o jovem (que muitas vezes cresceu pobre e sem oportunidades) em meio a adultos que estão há tempos no mundo do crime, e acaba-se com quaisquer chances de ressocialização. Quando o apenado finalmente deixa o sistema penitenciário (que, por sinal, não tem capacidade para suportar o aumento da população carcerária que a redução da maioridade causaria), o faz após ser influenciado e estigmatizado. As chances de reincidência crescem.
  2. Por outro lado, aplica-se ao jovem uma sanção diferenciada, busca-se ressocializá-lo (o que já é tarefa difícil na situação atual) e, em longo prazo, talvez sejamos beneficiados por jovens não reincidentes.
Eu sei que este discurso parece frio, e que nossa reação é a de querer que o infrator pague pelo que fez. Contudo, não podemos nos eximir de pensar nos efeitos a longo-prazo que as políticas têm na sociedade, em especial quando estamos falando de políticas de controle do crime.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #6

Comunidade

O comunitarismo é uma reação esperável à acelerada "liquefação" da vida moderna. O comunitarismo renascido responde à questão genuína e pungente de que o pêndulo oscila radicalmente - e talvez para longe demais - afastando-se do pólo da segurança na díade dos valores humanos fundamentais. O principal apelo do comunitarismo é a promessa de um porto seguro, o destino dos sonhos dos marinheiros perdidos no mar turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível. Os que estavam presos dentro de uma casa comum de alvenaria podiam, vez ou outra, ser assaltados pela estranha impressão de estar numa prisão e não num porto seguro; a liberdade da rua acenava de fora, tão inacessível quanto a sonhada segurança do lar tende a ser hoje.  A comunidade ideal é um compleat mappa mundi: um mundo total, que oferece tudo de que se pode precisar para levar uma vida significativa e compensadora. O mundo comunitário está completo porque todo o resto é irrelevante; mais exatamente, hostil - um ermo repleto de emboscadas e conspirações e fervilhante de inimigos que brandem o caos como sua arma principal.

O "nós" do credo patriótico/nacionalista significa pessoas como nós-, "eles" significa pessoas que são diferentes de nós. As fronteiras não reconhecem e registram um estranhamento já existente; elas são traçadas, como regra, antes que o estranhamento seja produzido. Primeiro há um conflito, uma tentativa desesperada de separar "nós" e "eles"; então os traços cuidadosamente espiados "neles" são tomados como prova e fonte de uma estranheza que não admite conciliação. Sendo os seres humanos como são, criaturas multifacetadas com muitos atributos, não é difícil encontrar tais traços quando a busca é feita a sério.

Podemos dizer que em rigorosa oposição tanto à fé patriótica quanto à nacionalista, o tipo mais promissor de unidade é a que é alcançada, e realcançada a cada dia, pelo confronto, debate, negociação e compromisso entre valores, preferências e caminhos escolhidos para a vida e a auto- identificação de muitos e diferentes membros da polis, mas sempre autodeterminados. Uma unidade erguida pela negociação e reconciliação, e não pela negação, sufocação ou supressão das diferenças. O "nós' como insiste Richard Sennett, "é hoje um ato de autoproteção. O desejo de comunidade é defensivo ... Certamente é quase urna lei universal que o "nós" pode ser usado como defesa contra a confusão e o deslocamento" Mas - e este é um "mas" crucial - quando o desejo de comunidade "se expressa como rejeição dos imigrantes e outros estranhos", é porque a política atual baseada no desejo de refúgio tem por alvo os fracos, que viajam nos circuitos do mercado global de trabalho, e não os fortes, as instituições que mobilizam os trabalhadores pobres ou fazem uso de sua privação relativa. A imagem da comunidade é purificada de tudo o que pode trazer uma sensação de diferença, que dirá conflito, a quem somos "nós”. Desse modo, o mito da solidariedade comunitária é um ritual de purificação ... O que distingue esse compartilhamento mítico nas comunidades é que as pessoas sentem que pertencem umas às outras, e ficam juntas, porque são as mesmas ... O sentimento de "nós' que expressa o desejo de semelhança, é um modo de evitar olhar mais profundamente nos olhos dos outros.

O potencial de liberação nunca foi a questão dos comunitários; os problemas que se esperava que as futuras comunidades sanassem eram sedimentos dos excessos de liberação, de um potencial de liberação grande demais para ser confortável.

Parece haver pouca esperança de resgatar os serviços de certeza, segurança e garantias do Estado. A liberdade da política do Estado é incansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das terríveis armas da extraterritorialidade. Se a demonstração diária e rotineira da superioridade das forças globais não for suficiente para forçar o Estado a ver a razão e cooperar com a nova "ordem mundial' a força militar é exercida: a superioridade da velocidade sobre a lentidão, da capacidade de escapar sobre a necessidade de engajar-se no combate, da extraterritorialidade sobre a localidade, tudo isso se manifesta espetacularmente com a ajuda, desta vez, de forças armadas especializadas em táticas de atacar e correr e a estrita separação entre "vidas a serem salvas" e vidas que não merecem socorro.

Para as multinacionais (isto é, empresas globais com interesses e compromissos locais dispersos e cambiantes), "o mundo ideal" "é um mundo sem Estados, ou pelo menos com pequenos e não grandes Estados' observou Eric Hobsbawm. "A menos que tenha petróleo, quanto menor o Estado, mais fraco ele é, e menos dinheiro é necessário para se comprar um governo". A clara incapacidade dos governos de equilibrar as contas com os recursos que controlam (isto é, os recursos que eles podem estar certos de que continuarão no domínio de sua jurisdição independente do modo que escolham para equilibrar as contas) seria suficiente para fazê-los não só se renderem ao inevitável, mas colaborarem ativamente e de bom grado com os "globais”.


A maioria das comunidades explosivas contemporâneas são feitas sob medida para os tempos líquidos modernos mesmo que sua disseminação possa ser projetada territorialmente; precisam de um espetáculo que apele a Interesses semelhantes em indivíduos diferentes e que os reúna durante um certo tempo em que outros interesses - que os separam em vez de uni-los - são temporariamente postos de lado, deixados em fogo brando ou inteiramente silenciados. Os espetáculos passaram a substituir a "causa comum" da era da modernidade sólida, do hardware - o que faz diferença para a natureza das identidades ao novo estilo e leva a dar sentido às tensões emocionais e traumas geradores de agressividade que de tempos em tempos as acompanham. A cada dia, as manchetes de primeira página da imprensa e dos cinco primeiros minutos da TV acenam com novas bandeiras sob as quais reunir-se e marchar ombro (virtual) a ombro (virtual). Oferecem um "objetivo comum" (virtual) em torno do qual comunidades virtuais podem se entrelaçar, alternadamente atraídas e repelidas pelas sensações sincronizadas de pânico (às vezes moral, mas geralmente imoral ou amoral) e êxtase.

Minha Playlist - #02



















domingo, 19 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #5


Trabalho

O "progresso" não representa qualquer qualidade da história, mas a auto confiança do presente.  Quanto menor é a firmeza no presente, tanto menos o "futuro" pode ser integrado no projeto. Lapsos de tempo rotulados de "futuro" encurtam, e a duração da vida como um todo é fatiada em episódios considerados "um de cada vez”. A continuidade não é mais marca de aperfeiçoamento.

A nossa experiência é semelhante à dos passageiros que descobrem, bem alto no céu, que a cabine do piloto está vazia. O centro de controle tornou-se oculto: nunca mais será ocupado por um líder conhecido ou por uma ideologia clara.

Quaisquer que tenham sido as virtudes que fizeram o trabalho ser elevado ao posto de principal valor dos tempos modernos, sua maravilhosa, quase mágica, capacidade de dar forma ao informe e duração ao transitório certamente está entre elas. O "trabalho" assim definido era um esforço coletivo de que cada membro da espécie humana tinha que participar. Atualmente, atos de trabalho se parecem mais com as estratégias de um jogador que se põe modestos objetivos de curto prazo, não antecipando mais que um ou dois movimentos. A pessoa é medida e avaliada por sua capacidade de entreter e alegrar, satisfazendo não tanto a vocação ética do produtor e criador quanto as necessidades e desejos estéticos do consumidor, que procura sensações e coleciona experiências.

A separação das atividades produtivas do resto dos objetivos da vida permitiu que o "esforço físico e mental" se condensasse num fenômeno em si mesmo - uma "coisa" a ser tratada como todas as coisas, isto é, a ser "manipulada' movida, reunida a outras "coisas" ou feita em pedaços.

A incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora. Ela divide em vez de unir, e como não há maneira de dizer quem acordará no próximo dia em qual divisão, a ideia de "interesse comum" fica cada vez mais nebulosa e perde todo valor prático. O capital se tornou exterritorial, leve, desembaraçado e solto numa medida sem precedentes, e seu nível de mobilidade espacial é na maioria dos casos suficiente para chantagear as agências políticas dependentes de território e fazê-las se submeterem a suas demandas. A ameaça (mesmo quando não expressa e meramente adivinhada) de cortar os laços locais e mudar-se para outro lugar é uma coisa que qualquer governo responsável, em beneficio próprio e no de seus concidadãos, deve tratar com a maior seriedade, tentando subordinar suas políticas ao propósito supremo de evitar a ameaça do desinvestimento. Paradoxalmente, os governos podem ter a esperança de manter o capital em seu lugar apenas se o convencerem de que ele está livre para ir embora - com ou sem aviso prévio.

Acesso à "informação" (em sua maioria eletrônica) se tornou o direito humano mais zelosamente defendido e o aumento do bem-estar da população como um todo é hoje medido, entre outras coisas, pelo número de domicílios equipados com (invadidos por?) aparelhos de televisão.

A procrastinação como prática cultural surgiu com a modernidade. A procrastinação deriva seu sentido moderno do tempo vivido como uma peregrinação, como um movimento que se aproxima de um objetivo. A procrastinação tende a tornar-se seu próprio objetivo. A coisa mais importante deixada de lado no ato da procrastinação tende a ser o fim da própria procrastinação. O adiamento da satisfação mantém o produtor a serviço do consumidor - mantendo o consumidor que vive no produtor plenamente acordado e de olhos bem abertos.  Contudo, muito mais efêmero e frágil que o trabalho, e, ao contrário do trabalho, não reforçado por rotinas institucionalizadas, o desejo não tem chance de sobreviver se a satisfação for deixada para as calendas gregas. Para se manter vivo e fresco, o desejo deve ser, algumas vezes, e frequentemente, satisfeito ainda que a satisfação signifique o fim do desejo.

A cultura em guerra com a procrastinação é uma novidade na história moderna. Ela não tem lugar para tomar distância, nem para reflexão, continuidade, tradição.

Precariedade, instabilidade, vulnerabilidade, é a característica mais difundida das condições de vida contemporâneas. O desemprego nos países prósperos tornou-se "estrutural".  E o progresso tecnológico - de fato, o próprio esforço de racionalização - tende a anunciar cada vez menos, e não mais, empregos. Na falta de segurança de longo prazo, a "satisfação instantânea" parece uma estratégia razoável. As modas vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Condições econômicas e sociais precárias treinam homens e mulheres  a perceber o mundo como um contêiner cheio de objetos descartáveis, objetos para uma utilização; o mundo inteiro - inclusive outros seres humanos. Mesmo um pequeno problema pode causar a ruptura de parceria; desacordos triviais se tornam conflitos amargos, pequenos atritos são tomados como sinais de incompatibilidade essencial e irreparável.


Pierre Bourdieu mostra a ligação entre o colapso da confiança e o enfraquecimento da vontade de engajamento politico e ação coletiva: a capacidade de fazer projeções para o futuro, sugere, é a conditio sine qua non de todo pensamento "transformador" e de todo esforço de reexaminar e reformar o estado presente das coisas - mas projeções sobre o futuro raramente ocorrerão a pessoas que não têm o pé firme no presente.

sábado, 18 de outubro de 2014

Breve opinião sobre: LUCY (contém spoilers)





Acabei de assistir Lucy. O filme conta com uma série de efeitos visuais, tem a delícia da Scarlett Johansson como protagonista e o divo absoluto Morgan Freeman também faz parte do elenco. 
Outro ponto positivo é o ritmo da narrativa, que acaba por prender a sua atenção à trama que não é lá aquelas coisas.
Contudo, é óbvio que meu cérebro cricri ficou vasculhando o filme até encontrar 1001 defeitos. Dentre estes defeitos, parar mim o mais irritante é a falta de verossimilhança. A verossimilhança é a acreditabilidade do filme (diferentemente de veracidade, que diz respeito a ser verdadeiro ou não). Assim, um universo pode ser ficcional (ou seja, não verídico) e verossímil, desde que a lógica por trás desse universo ficcional seja bem construída. É o caso dos universos de Harry Potter e de Senhor dos Anéis, por exemplo.

(Esse vídeo fala exatamente sobre veracidade e verossimilhança)

O que acontece é que, pra começar, o filme Lucy é todo baseado na premissa falsa de que usamos somente 10% do nosso cérebro. Segue um trecho (livremente traduzido) do que é explicado no vídeo "7 mitos a respeito do cérebro que você pensou que fossem verdadeiros".

A maioria dos filmes e livros de ficção científica nos fazem acreditar que humanos podem utilizar apenas 10% do cérebro, o que é absolutamente sem sentido. Graças à tecnologia moderna de escaneamento cerebral, nós sabemos que usamos tudo o tempo inteiro. Não necessariamente tudo de uma vez. Quando você caminha, por exemplo, a parte do cérebro associada a movimentos está mais ativa do que outras áreas. No entanto, não há nenhuma parte do cérebro que não faz nada. Ele representa 3% do peso do corpo e usa 20% da nossa energia. Este é um cérebro ocupado.
Segue a integralidade do vídeo, que está em inglês mas tem opções de legendas nas configurações. O trecho que traduzi aqui tem início em 1min e 10segs. 



Agora de volta ao que interessa. Uma vez que a premissa básica do filme já foi desbancada e as explicações dadas ao longo da história são bem pouco convincentes, fica a impressão de que tudo não passa de uma desculpa pseudo-complexa para holywoodianices. Em outras palavras: botaram o tio Freeman a usar sua voz sedutora e sábia pra arrotar um monte de balela sem sentido, só pra "explicar" o fato de que a Scarlett virou ninja do dia pra noite.
Aliás, a Scarlett não só vira ninja, como ela começa a adquirir conhecimentos e se expandir, entrando em contato com tudo ao seu redor. No final das contas ela faz o upload de seu conhecimento para um pendrive e, quando questionada onde está, afirma estar em todo lugar. Se você já viu o filme Transcendence (que também tem o Morgan Freeman, por sinal) deve ter percebido a semelhança entre as ideias.

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #4


Tempo/espaço

Nunca e em nenhum lugar faltaram pessoas prontas a encontrar uma lógica para sua infelicidade, frustrações e derrotas humilhantes atribuindo a culpa a intenções malévolas e mal-intencionados planos alheios. O que é novo é que são os assaltantes (juntamente com os vagabundos e outros desocupados, personagens estranhos ao lugar em que se movem) que levam agora a culpa, representando o diabo. Nos anos 60 e 70, os eleitores e as elites - uma ampla classe média nos Estados Unidos - poderiam ter enfrentado a escolha de apoiar a política governamental para eliminar a pobreza, administrar a competição étnica e integrar a todos em instituições públicas comuns. Escolheram, em vez disso, comprar proteção, estimulando o crescimento da indústria da segurança privada. A comunidade definida por suas fronteiras vigiadas de perto e não mais por seu conteúdo; a "defesa da comunidade" traduzida como o emprego de guardiões armados para controlar a entrada; assaltante e vagabundo promovidos à posição de inimigo número um; compartimentação das áreas públicas em enclaves "defensáveis" com acesso seletivo; separação no lugar da vida em comum - essas são as principais dimensões da evolução corrente da vida urbana.

O que significa, então, dizer que o meio urbano é "civil" e, assim, propício à prática individual da civilidade? Significa, antes e acima de tudo, a disponibilidade de espaços que as pessoas possam compartilhar como personae públicas - sem serem instigadas, pressionadas ou induzidas a tirar as máscaras e "deixar-se ir' "expressar-se' confessar seus sentimentos íntimos e exibir seus pensamentos, sonhos e angústias. A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los a abandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os fazem estranhos. A principal característica dos lugares "públicos mas não civis"  é a dispensabilidade dessa interação.

"Os consumidores frequentemente compartilham espaços físicos de consumo, como salas de concertos ou exibições, pontos turísticos, áreas de esportes, shopping centers e cafés, sem ter qualquer interação social real':6 Esses lugares encorajam a ação e não a interação. Compartilhar o espaço físico com outros atores que realizam atividade similar dá importância à ação, carimba-a com a aprovação do número.” Os lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma "realidade real" externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança.
Podemos dizer que "comunidade" é uma versão compacta de estar junto, e de um tipo de estar junto que quase nunca ocorre na "vida real": um estar junto de pura semelhança, do tipo "nós que somos todos o mesmo"; um estar junto que por essa razão é não-problemático e não exige esforço ou vigilância, e está na verdade pré-determinado; um estar junto que não é uma tarefa, mas "o dado" e dado muito antes que o esforço de fazê-lo.

Como lidar com a alteridade, por Claude Lévi-Strauss: a primeira estratégia visava ao exílio ou aniquilação dos "outros' a segunda visava à suspensão ou aniquilação de sua alteridade.

Como indica Richard Sennett, invocam-se mais a lei e a ordem quando as comunidades estão mais isoladas das outras pessoas na cidade Durante as últimas duas décadas as cidades nos EUA cresceram de maneira que homogeneizou as áreas étnicas; não é por acaso, então, que o medo do estranho também cresceu à medida que essas comunidades étnicas foram isoladas. “Manter a comunidade torna-se um fim em si mesmo; o expurgo dos que não fazem parte torna-se assunto da comunidade.” A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. Não surpreende, pois, que a etnicidade, mais que qualquer outra espécie de identidade postulada, seja a primeira escolha quando se trata de fugir do assustador espaço polifônico onde "ninguém sabe falar com ninguém" para o "nicho seguro" onde "todos são parecidos com todos" - e onde, assim, há pouco sobre o que falar e a fala é fácil. 

O que quer que aconteça nesses "não-lugares", todos devem sentir-se como se estivessem em casa, mas ninguém deve se comportar como se verdadeiramente em casa. Um não-lugar "é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história: exemplos incluem aeroportos, autoestradas, anônimos quartos de hotel, transporte público Jamais na história do mundo os não-lugares ocuparam tanto espaço"

Os espaços vazios são antes de mais nada vazios de significado. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos.  A cidade, como outras cidades, tem muitos habitantes, cada um com um mapa da cidade em sua cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem  em lugares diferentes.
Algo deve ter acontecido à amplitude e à capacidade de carga da prática humana para que os soberanos espaço e tempo repentinamente se ponham a encarar, olhos nos olhos, os filósofos. Esse "algo" foi, podemos adivinhar, a construção de veículos que podiam se mover mais rápido que as pernas dos humanos ou dos animais; e veículos que, em clara oposição aos humanos e aos cavalos, podem ser tornados mais e mais velozes, de tal modo que atravessar distâncias cada vez maiores tomará cada vez menos tempo.

O tempo é diferente do espaço porque, ao contrário deste, pode ser mudado e manipulado; tornou-se um fator de disrupção: o parceiro dinâmico no casamento tempo-espaço. A modernidade nasceu sob as estrelas da aceleração e da conquista de terras. Essa foi a era do hardware, a época das máquinas pesadas e cada vez mais desajeitadas, dos muros de fábricas cada vez mais longos guardando fábricas cada vez maiores que ingerem equipes cada vez maiores, das poderosas locomotivas e dos gigantescos transatlânticos. Riqueza e poder que dependem do tamanho e qualidade do hardware tendem a ser lentas, resistentes e complicadas de mover.

Tudo isso mudou, no entanto, com o advento do capitalismo de software e da modernidade "leve”. A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação do tempo. No universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, em "tempo nenhum”. O espaço não impõe mais limites à ação e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta. São os obstáculos que precisam ser superados no caminho que leva à sua apropriação, "a tensão da luta por elas'; que as fazem valiosas. O tempo não é mais o "desvio na busca'; e assim não mais confere valor ao espaço. Quem manda são as pessoas que conseguem manter suas  ações livres, sem normas e portanto imprevisíveis, ao mesmo tempo em que regulam normativamente as ações dos protagonistas. Pessoas com as mãos livres mandam em pessoas com as mãos atadas. O capital se livrou do peso e dos custos exorbitantes de mantê-lo. A arte da administração na era do capitalismo leve consiste em manter afastada a "mão-de-obra humana" ou, melhor ainda, forçá-la a sair. Encontros breves substituem engajamentos duradouros. A competição pela sobrevivência certamente é o destino dos trabalhadores - e de todos os que estão do lado que sofre a mudança da relação entre tempo e espaço.


O ilimitado das sensações possíveis ocupa o lugar que era ocupado nos sonhos pela duração infinita.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #3

Individualidade


O mundo ordeiro do discurso de Joshua é um mundo rigidamente controlado. Tudo nesse mundo serve a algum propósito, mesmo que não seja claro (por enquanto, para alguns, mas para sempre, para a maioria) qual é esse propósito. Esse mundo não tem espaço para o que não tiver uso ou propósito. O não-uso, além disso, seria reconhecido nesse mundo como propósito legítimo. Para ser reconhecido, deve servir à manutenção e perpetuação do todo ordenado.

O capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos supervisores; o de homens e mulheres dirigidos por outros, buscando fins determinados por outros, do modo determinado por outros. Weber previu o triunfo iminente da "racionalidade instrumental": com o destino da história humana dado como sabido, e a questão dos fins da ação humana acertada e não mais aberta à contestação, as pessoas passariam a se ocupar mais, talvez exclusivamente, da questão dos meios - o futuro seria, por assim dizer, obcecado com os meios. No capitalismo leve temos  o que está em pauta é a questão de considerar e decidir, em face de todos os riscos conhecidos ou meramente adivinhados, quais dos muitos flutuantes e sedutores fins "ao alcance" (isto é, que podem ser razoavelmente perseguidos) devem ter prioridade - dada a quantidade de meios disponíveis e levando em consideração as ínfimas chances de sua utilidade duradoura.  Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. As autoridades não mais ordenam; elas se tornam agradáveis a quem escolhe; tentam e seduzem. A autoridade amplia o número de seguidores, mas, no mundo de fins incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz - que é- a autoridade. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. A consciência de que o jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o inventário das maravilhas que a vida pode oferecer são muito agradáveis e satisfatórios.

No mundo atual não temos líderes, mas sim conselheiros. Ao fim da sessão de aconselhamento, as pessoas aconselhadas estão tão sós quanto antes. Qualquer que fosse o conteúdo do aconselhamento, este se referia a coisas que a pessoa aconselhada deveria fazer por si mesma, aceitando inteira responsabilidade por fazê-las de maneira apropriada, e não culpando a ninguém pelas conseqüências desagradáveis que só poderiam ser atribuídas a seu próprio erro ou negligência.  Olhando para a experiência de outras pessoas, tendo uma ideia de suas dificuldades e atribulações, esperamos descobrir e localizar os problemas que causaram nossa própria infelicidade, dar-lhes um nome e, portanto, saber para onde olhar para encontrar meios de resistir a eles ou resolvê-los.

Procurar exemplos, conselho e orientação é um vício: quanto mais se procura, mais se precisa e mais se sofre quando privado de novas doses da droga procurada.
O código em que nossa "política de vida" está escrito deriva da pragmática do comprar. "Vamos às compras" pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos escondermos do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa "dependência" do parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor meio de poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar dinheiro antes de ganhá-lo; pelos recursos para fazer mais rápido o que temos que fazer e por coisas para fazer a fim de encher o tempo então disponível; pelas comidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para eliminar as conseqüências de comê-las; pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores pílulas contra a dor de cabeça. A história do consumismo é a história da quebra e descarte de sucessivos obstáculos "sólidos" que limitam o vôo livre da fantasia e reduzem o "princípio do prazer" ao tamanho ditado pelo "princípio da realidade'. Alfred Sloan era um pioneiro do que mais tarde se tornaria uma tendência universal. A produção de mercadorias como um todo substitui hoje "o mundo dos objetos duráveis" pelos "produtos perecíveis projetados para a obsolescência imediata"
Numa sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres não podem desviar os olhos; não há mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o sentido da realidade empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos.

O status de todas as normas, inclusive a norma da saúde, foi severamente abalado e se tornou frágil, numa sociedade de infinitas e indefinidas possibilidades. O que ontem era considerado normal e, portanto, satisfatório, pode hoje ser considerado preocupante, ou mesmo patológico, requerendo um remédio. Primeiro, estados do corpo sempre renovados tomam-se razões legítimas para intervenção médica - e as terapias disponíveis também não ficam estáticas.

Quando falamos de identidade há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica, consistência: todas as coisas que parecem - para nosso desespero eterno - faltar tanto e tão abominavelmente ao fluxo de nossa experiência. A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme.  As identidades parecem fixas e sólidas apenas quando vistas de relance, de fora. A "idade da ironia" foi substituída pela "idade do glamour”, em que a aparência é consagrada como única realidade A modernidade, assim, muda de um período do eu "autêntico" para um período do eu "irônico" e para uma cultura contemporânea do que poderia ser chamado de eu "associativo" - um "afrouxamento" contínuo dos laços entre a alma "interior" e a forma "exterior" da relação social. As identidades são assim oscilações contínuas.


Mudar de identidade pode ser uma questão privada, mas sempre inclui a ruptura de certos vínculos e o cancelamento de certas obrigações; os que estão do lado que sofre quase nunca são consultados, e menos ainda têm chance de exercitar sua liberdade de escolha.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #2

Emancipação


Uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser "objetivamente"  satisfatório. O corolário dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes de sua própria situação.

Outros discursos freqüentes para protestos semelhantes foram os do "aburguesamento" dos despossuídos (a substituição de "ser" por "ter" e a de "agir" por "ser" como  os valores mais altos) e da "cultura de massas" (uma lesão cerebral coletiva causada pela "indústria cultural' plantando uma sede de entretenimento e diversão no lugar que - como diria Mathew Arnold - deveria ser ocupado pela "paixão pela doçura e pela luz e pela paixão de fazer com que estas triunfem").

Para hobbes, a falta de limites eficazes faz a vida "detestável, brutal e curta" - e, assim, qualquer coisa, menos feliz.  A coerção social é, nessa filosofia, a força emancipadora, e a única esperança de liberdade a que um humano pode razoavelmente aspirar. O resultado da rebelião contra as normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria condição, é uma agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza.

Os homens e as mulheres são inteira e verdadeiramente livres, e assim a agenda da libertação está praticamente esgotada. Somos talvez mais "predispostos à crítica': mais assertivos e intransigentes em nossas críticas, que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim dizer, "desdentada' incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas na "política-vida' A liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como há tempo nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência sem precedentes.

A teoria crítica pretendia desarmar e neutralizar, e de preferência eliminar de uma vez, a tendência totalitária de uma sociedade que se supunha sobrecarregada de inclinações totalitárias intrínseca e permanentemente.

O que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio humano:  a compulsiva e obsessiva, continua, irrefreável e sempre incompleta modernizaçâo; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa.
Movemo-nos  e continuaremos a nos por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranqüila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os objetivos  perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes.

Se a modernidade original era pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado de seus deveres "emancipatórios' exceto o dever de ceder a questão da emancipação às camadas média e inferior, às quais foi relegada a maior parte do peso da modernização contínua.

A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de "individualização' assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada "sociedade'. Resumidamente, a "individualização" consiste em transformar a "identidade" humana de um "dado" em uma "tarefa" e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada. O outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania.

Libertar as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão, sugeriu ele. O "cidadão" é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade - enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à "causa comum' ao "bem comum' à "boa sociedade" ou à "sociedade justa' Qual é o sentido de "interesses comuns" senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses? As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do "poder público" são que ele observe os "direitos humanos' isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam "em paz" - protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus. Não é mais verdade que o "público" tente colonizar o "privado" O que se dá é o contrário (política vida).

Foi só o sentido atribuído à emancipação sob condições passadas e não mais presentes que ficou obsoleto - não a tarefa da emancipação em si → Há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e suas chances de se tornar indivíduos de facto  - isto é, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade desejam. O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a critica compulsiva da realidade. Se o velho objetivo da teoria crítica - a emancipação humana - tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo que se abriu entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto.

O indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de fato sem antes tornar-se cidadão.


O objeto da ação dos filósofos não são apenas os próprios filósofos, seu pensamento, o "fazer interno" do filosofar, mas o mundo enquanto tal, e, por fim, a harmonia entre os dois. E tampouco há como evitar o fato duro de que - pelo menos no começo, enquanto a distância entre a verdade da filosofia e a realidade do mundo não for preenchida – o Estado seja tirânico. A tirania (Kojéve é inflexível quanto à possibilidade de essa forma de governo ser definida em termos moralmente neutros) ocorre quando uma fração dos cidadãos (pouco importa que sejam minoria ou maioria) impõe a todos os outros cidadãos suas idéias e ações, que são guiadas por uma autoridade que essa fração reconhece espontaneamente, mas que não conseguiu fazer que os outros reconheçam.

domingo, 12 de outubro de 2014

Minha Playlist - #01











































































"MELHOR QUE CHOCOLATE" X "AZUL É A COR MAIS QUENTE"


ATRAÇÃO À PRIMEIRA VISTA


CONHECENDO INTERESSES


LET'S GET PHYSICAL ♫

 
MOMENTOS CONSTRANGEDORES EM FAMÍLIA


E, CLARO, MUITO DRAMA!


Recortes do livro "Modernidade Líquida", de Zygmunt Bauman #1

Liquidez


O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples, é que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade.  Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la.

Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. Por isso mesmo, essa forma de "derreter os sólidos" deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar - nua, desprotegida, desarmada e exposta,  impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles.

Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído por outro; as pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser admoestadas e censuradas caso não conseguissem se realocar, através de seus próprios esforços dedicados, contínuos e verdadeiramente infindáveis, nos nichos pré-fabricados da nova ordem: nas classes, as molduras que (tão intransigentemente como os estamentos já dissolvidos) encapsulavam a totalidade das condições e perspectivas de vida e determinavam  o âmbito dos projetos e estratégias realistas de vida.

O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da política-vida, muda aquela condição de um modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma ou encarnação, é possível; ou - se não for - como fazer com que eles  tenham um enterro decente  e eficaz.

O poder pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico - e assim o tempo requerido para o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade. Em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial não mais limitado, nem mesmo desacelerado,  pela resistência do espaço.

É a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substituição que traz lucro hoje - não a durabilidade e confiabilidade do produto. Numa notável reversão da tradição milenar, são os grandes e poderosos que evitam o durável e desejam o transitório, enquanto os da base da pirâmide - contra todas as chances - lutam desesperadamente para fazer suas frágeis, mesquinhas e transitórias posses durarem mais tempo.