Não é
difícil concluir que, quando entrei em Hogwarts, a pressão em cima
de mim era bem grande. Eu já era a filha de pais desertores inconsequentes. Para piorar, eu era desajeitada, baixinha
e tinha a personalidade (encrenqueira) constantemente questionada por minhas primas e tias.
Assim,
quando me aconcheguei em uma das cabines do Expresso de Hogwarts,
estava com a cabeça a milhão. Um turbilhão de planos mirabolantes
ecoavam no espaço semi-vazio entre minhas orelhas, tais como: “Posso
manipular o chapéu seletor pra ele me botar na Corvinal... Ou posso
aprender um feitiço de manipulação e fazer alguém realizar minhas
tarefas...” Eram muitas as ideias geniais,
mas a que prevaleceu surgiu de um artigo do jornal bruxo local.
Passei boa parte da viagem lendo a edição especial do Profeta Diário, em busca de inspiração.
Havia uma matéria extensa sobre a família Potter, com destaque para
Harry. Algumas frases me marcaram mais que outras. A primeira delas
foi:
(...) Assim que chegou em Hogwarts, Harry chamou a atenção de
todos com sua peculiar cicatriz em forma de raio (...)
Eis que uma luz se acendeu nas profundezas de minha mente obscura... Afinal não há como passar batido quando se tem uma cicatriz gigante no meio da cara (ao menos era o que eu esperava).
✧✧✧
A cerimônia de abertura foi repleta de surpresas. A começar pelo
tropeção que levei quando me dirigia ao chapéu seletor. Precisei
dobrar a passada seguinte para evitar desmoronar diante de todos:
— SONSERINA! —
Bradou o chapéu, ao que esbravejei baixinho.
Contrariada, caminhei
pisando duro até a mesa da Sonserina, onde me acomodei entre
dois desconhecidos. “Ótimo, caí na casa mais mal-falada.”
Lamentei mentalmente, aguardando o banquete.
Meu humor melhorou quando o magnífico banquete cerimonial foi conjurado diante dos meus olhos. Além disso, descobri que Anastasia, a
meio-irmã (pelo lado dos Phoenix) de minha prima Rachel, estava
sentada à mesa dos professores. Ela era a mais jovem e mais bela dos
docentes. Tinha vários traços faciais semelhantes aos de Rachel,
mas a simpatia e a postura acolhedora acabavam ofuscando tais
similaridades. Desnecessário dizer que, desde o dia em que Rachel a
apresentara para os Magno, desenvolvi um amor platônico pela mulher.
— Oh, oi! — Fui
forçada a acordar de meus devaneios ao perceber que, depois de
encarar 'Ana' por tanto tempo, ela acabara percebendo e acenando
para mim.
✧✧✧
Uma vez encerrada a cerimônia de abertura, todos os alunos se dirigiram aos seus respectivos salões comunais. O meu ficava nas
escuras e úmidas masmorras do castelo. Tomei o cuidado de memorizar
a trajetória até o dormitório e, quando parei ao lado de minha
cama, deslizei para baixo das cobertas sem me dar o trabalho de colocar o pijama. As
outras meninas estavam tão ouriçadas que sequer perceberam.
Levou algum tempo até
que todos caíssem no sono. Não fosse um dos monitores
ter batido na porta e protestado contra as conversas intensas, creio
que teríamos varado a noite. Para ser sincera, eu até que estava
gostando do clima descontraído.
Ocorre que
eventualmente as meninas adormeceram ao meu redor. Naquele silêncio,
quebrado apenas por suspiros e farfalhar de pijamas contra lençóis, ficou mais difícil ignorar minha grande preocupação: o
medo de passar em branco.
Assim, tão logo
terminei de juntar coragem para sair da cama, abandonei o salão comunal sorrateiramente. Trazia comigo somente a varinha mágica e uma ideia, a mesma que tivera ainda mais cedo, enquanto lia o Profeta Diário.
Cruzei os corredores do
subsolo, galguei os degraus de pedra rumo ao saguão e de repente senti as pernas amolecerem. Pálida e gelada de medo, escutei duas vozes retumbantes vindas de cima. Lancei a cabeça para trás e avistei uma dupla de fantasmas tagarelas flutuando tranquilamente. Felizmente eles estavam tão distraídos que nem perceberam a minha presença
nanica. Mesmo assim eu recuei até a penumbra do subsolo, onde
aguardei alguns instantes.
Meus joelhos ainda
bambeavam quando me forcei a seguir em frente. Cruzei o saguão
depressa e subi a grande escadaria de mármore que ficava de frente para a
entrada do castelo. Avançando aos tropeços, cheguei à primeira
escada flutuante. Mal pisei em seu primeiro degrau, ela começou a se
mover. Agarrei o corrimão com força e esperei pelo momento oportuno
para saltar.
Depois de andar (ou
levitar) feito barata tonta de uma escada à outra, finalmente
cheguei ao corredor desejado. Ficava no terceiro andar e recebia
somente a fraca iluminação lunar. Era largo e ladeado por altas
pilastras de pedra, que reforçavam o quão pequena e vulnerável eu
era. Engoli em seco e tentei ignorar o medo, seguindo em frente.
✧✧✧
"Aqui estou." Respirei aliviada ao girar a maçaneta gelada e perceber que a porta estava destrancada. Adentrei a biblioteca e fechei a porta atrás de mim. Agora estava sozinha e mergulhada numa escuridão densa e aparentemente intransponível.
— Lumos. — A pequena esfera de luz se formou e desapareceu depressa. — Lumos. — Tentei de novo, identificando o cenário ao meu redor.
"Estantes ao fundo. LUMOS. Balcão da bibliotecária. LUMOS. Mesas de estudo. LUMOS. OH MEU DEUS."
Comecei a guinchar feito um leitão, mas fui interrompida pela mão pequena que abafava minha voz.
— Ei, o que temos aqui? — O garoto devia ter uns quatro anos a mais que eu.
Ele tinha um sorriso vitorioso quando me agarrou pelos ombros e me levantou do chão. Contudo, o triunfo desapareceu de seu semblante assim que ele percebeu algo em meu uniforme.
— Droga, você também é da sonserina. — Me soltou, revoltado.
Ainda me recuperando do sobressalto, apenas o encarei com os olhos castanhos arregalados.
— O que é que está procurando aqui? — Voltou a esboçar seu sorriso maldoso.
— Preciso de um livro de feitiços usados em duelos. — Expliquei com a voz fraca e trêmula.
O garoto acenou a cabeça num gesto de aprovação. Após me entregar um lampião, me explicou onde estavam os livros de feitiços avançados e recomendou que eu fosse rápida, pois um flagra custaria pontos para a sonserina.
Assenti e me afastei com o lampião em mãos. Chegando no setor dos livros de feitiços, apontei o lampião em todas as direções, mas nenhum dos títulos parecia ter nexo com o que eu precisava. Já estava começando a sentir um cansaço nos braços e nos olhos. Felizmente, porém, deixei o olhar recair sobre um livro grosso de capa desgastada e folhas amareladas.
— Accio. — Sussurrei, já que o tal volume estava na prateleira mais alta da estante. — Accio livro. — Repeti, ainda sem sucesso. — ACCIO! — Desta vez pode-se dizer que logrei sucesso.
Fui acometida por uma chuva de livros pesados, poeirentos e com cheiro de naftalina. Alguns deles me atingiram na cabeça e nos ombros, e todos colidiram estrondosamente contra o chão. Sem perder tempo, catei o volume de que precisava e percorri o índice.
"Nada de feitiço para cicatriz... Vou ter que fazer um corte de verdade mesmo... Oldschool!" Pensei com meus botões.
Foi neste instante que, no auge da inteligência de uma menina de onze anos, resolvi que seria uma boa ideia lançar um Sectumsempra... Em mim mesma! Limpei a garganta, reli as instruções, ensaiei o gesto e a pronúncia, imaginei a forma que daria à cicatriz e apontei a varinha para o meu rosto.
— Sectumsempra. — Resmunguei titubeante.
— MAS O QUE ESTÁ ACONTECENDO? — O zelador me interrompeu no exato momento em que terminei a conjuração.
Acontece que, por causa do susto que levei, meu punho acabou tremendo e alterando a trajetória do feitiço. A centelha mágica, que deveria ter acertado minha testa, atingiu o zelador em cheio. Por sorte a minha hesitação, somada à falta de experiência, refletiu na intensidade do feitiço, cujo efeito foi reduzido a alguns arranhões na lateral do rosto do homem. Obviamente que isto não impediu o velho de soltar um grito furioso e me agarrar pelas orelhas.
✧✧✧
O incidente não só me colocou em apuros, como também contribuiu para que os outros estudantes da sonserina fossem pegos. Cada um deles me fuzilava enquanto percorríamos um dos corredores do primeiro andar. Eles foram chamados primeiro e entraram, com visível relutância, no escritório da diretora da Grifinória. Aparentemente ela era a funcionária encarregada de supervisionar a escola naquela noite.
Aguardei ao lado do zelador. Ele ainda apertava meu braço entre os dedos, alheio aos meus resmungos.
— Tô ficando dormente. — Reclamei.
Ele abriu a boca pronto para disparar uma série de insultos, mas foi interrompido pelo rangido da porta a nossa frente. Um por um, os sonserinos deixaram o escritório da diretora da grifinória e me direcionaram olhares mortíferos.
— Boa noite, meninos. — Tentei fazer graça, mas ninguém pareceu disposto a sorrir.
— Sua vez. — O zelador foi me empurrando, fazendo com que eu entrasse aos saltos no tal escritório.
Pisquei duas vezes e encarei a mulher de braços cruzados a minha frente.
— Dot, o que diabos você foi fazer logo no primeiro dia de aula? — Anastasia trovejou, puxando a cadeira para que eu pudesse sentar.
Atordoada, não consegui decidir se estava aliviada ou constrangida. Sentei-me na cadeira e a encarei com meus olhos redondos e cheios de culpa.
— Você deixou o dormitório, visitou uma seção da biblioteca que não é apropriada para primeiranistas, derrubou e danificou vários livros, performou um feitiço que sequer está no currículo escolar, e feriu um funcionário. — Ela continuou. A dureza em sua voz fez com que eu lembrasse de Rachel.
Contudo, ao contrário de Ana, Rachel teria reagido com um misto de desdém e diversão sádica.
— Se não fosse eu a encarregada, você poderia ter sido expulsa. — Ao perceber meu semblante carregado de culpa e medo, a professora de astronomia foi suavizando a voz.
Após algum tempo lutando contra o constrangimento, expliquei o porquê de minha aventura, lamentando o fato de o zelador ter frustrado meus planos. Assim que terminei de esclarecer o ocorrido, ergui os olhos e percebi um misto de pena e repreensão no rosto da Srta. Phoenix.
— Não precisa me olhar assim. — Rosnei, fazendo-a soltar uma gargalhada ressoante.
— Eu teria duvidado dessa explicação em outras circunstâncias, mas vindo de uma Magno não é nada improvável. — Então o sorriso desapareceu e ela retomou a seriedade. — Ainda assim, você e a sua casa vão pagar pela violação. Fique longe de confusões e talvez eu consiga com que a penalidade não seja tão pesada quanto deveria.
✧✧✧
Chegando no dormitório, fui recepcionada com um misto de indignação e fascinação. Contei como acertei o zelador com um feitiço proibido, adicionando detalhes sanguinolentos e exagerados. Isto por si só desencorajou meus colegas a me incomodarem por causa da perda de pontos. Fui dormir sem me preocupar com qualquer espécie de ameaça.
No outro dia, acordei com um calombo na cabeça e uma série de hematomas decorrentes da 'tempestade de livros'. Não fosse isso suficientemente ruim, fui caçoada por alunos de outras casas e descobri que minha casa perdera uma quantidade considerável de pontos.
Para fechar o ciclo da desgraça, Anastasia veio me buscar, logo na madrugada seguinte, em meu dormitório. Com um pouco de pesar tendencioso, ela me conduziu até o corujal e informou que meu castigo seria passar a noite limpando cocô de pássaro (e levando bicadas esporádicas de corujas mal humoradas).